Pular para o conteúdo principal

A CPLP vista da África

Os países africanos têm hoje um interesse acrescido em fortalecer as organizações internacionais em que participam e em maximizar as valências que elas oferecem (Portugal e o acesso à União Européia; o Brasil e o acesso aos países emergentes).
Boaventura de Sousa Santos.

A Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) é constituída predominantemente por países africanos. Não admira que nela dominem as dinâmicas políticas africanas, regionais e que sejam estas a condicionar as relações com países como Portugal e o Brasil. O regionalismo africano é hoje muito diversificado e intenso e é herdeiro de duas tradições: o pan-africanismo e o colonialismo. Há, por um lado, a União Africana e várias organizações regionais das quais as principais são a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), a Comunidade Econômica dos Estados da África Central (CEEAC), a Comunidade Econômica dos Estados da África Austral (SADC), a Comunidade da África Oriental (EAC); e há, por outro lado, as organizações que decorrem do colonialismo e dos laços neocoloniais que se procuraram manter depois das independências: a Commonwealth, a Francofonia e a CPLP.

De todas elas, a CPLP é aquela em que os países africanos têm, por agora, mais capacidade de manobra pelo fato de o fraco desenvolvimento de Portugal e a guerra de libertação não terem permitido à antiga potência colonial controlar os processos de desenvolvimento pós-independência.


Isto não significa que os laços neocoloniais não possam vir a surgir, quer protagonizados por Portugal, quer pelo Brasil (que foi colonizado, não colonizador, outra originalidade da CPLP).

As organizações de origem neocolonial são vistas pelos países africanos com uma forte dose de pragmatismo. Daí, que Moçambique seja membro de pleno direito da Commonwealth e observador da Francofonia e Cabo-Verde, a Guiné-Bissau e São Tome e Príncipe sejam membros de pleno direito da Francofonia. Arvorar a prevalência linguística, as tradições culturais ou os valores de direitos humanos em critérios definidores de pertença a estas organizações faz muito pouco sentido à luz do que tem sido a lógica da sua evolução. Quando qualquer destes critérios é acionado ele revela uma de duas coisas. Ou é usado para disfarçar as verdadeiras motivações: a expulsão do Zimbabwe da Commonwealth por violar os direitos humanos, quando o verdadeiro ‘crime’ foi o de expropriar os agricultores brancos, descendentes dos colonos. Ou é usado tão seletivamente que, no mínimo, revela hipocrisia.

Se, com olhar desapaixonado, observarmos o que se passa nos países da CPLP (e não me refiro exclusivamente aos africanos) não temos grandes razões para triunfalismo e, perante isso, a opção é entre a incoerência ou a arrogância de reclamarmos o privilégio de definir a norma: aos filhos legítimos da CPLP permitimos tudo, aos filhos adotivos exigimos que cumpram a lei e os princípios.

Os países africanos têm hoje um interesse acrescido em fortalecer as organizações internacionais em que participam e em maximizar as valências que elas oferecem (Portugal e o acesso à UE; o Brasil e o acesso aos países emergentes). São várias as razões. A África confronta-se com um problema de segurança que em larga medida é importado e que, paradoxalmente, é causado por quem pretende resolvê-lo: a criação, em 2007, do Africom, o Comando militar dos EUA para a África, por enquanto sediado fora de África. Na aparência vocacionado para combater o fundamentalismo islâmico e apoiar as missões de paz, o Africom visa garantir o acesso dos EUA aos recursos naturais estratégicos do continente (petróleo, bauxite, urânio, aquíferos) ante a eventual ameaça da China. Faz prever mais instabilidade política e uma corrida aos armamentos (tal como está acontecendo na América Latina), o que será fatal para países a braços com carências sociais elementares. Um multilateralismo alternativo pode ser uma salvaguarda.
A segunda razão prende-se à invisibilidade do sofrimento das populações africanas e a necessidade de por fim a isso. Ressentem-se os africanos que tanta atenção mundial seja dada ao derrame do petróleo no golfo do México quando a destruição ambiental do delta do Níger, muitas vezes mais grave e em resultado de décadas de criminosa negligência, não suscite interesse midiático.
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal) em debate aberto na Carta Maior.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

HAITI: O pais caribenho soterrado pela miséria, violência e agora pela desgraça estrutural

Meu país é doença em seu coração, todas as pessoas que têm no meu país vivem na rua – Jean Marc Fantaisie - 20 anos (Jovem haitiano, que reside na cidade de Jérémie, também conhecida como “A Cidade dos Poetas”. Jérémie é uma cidade rural do Haiti). O Haiti é um país caribenho que se localiza no leste da América Central. Em 1492, os espanhóis ocuparam somente o lado oriental da ilha - atualmente República Dominicana – onde todos os índios da região foram mortos ou escravizados. Já o lado ocidental da ilha, onde hoje se localiza o Haiti, foi cedido aos franceses em 1697. Estes, por sua vez, passaram a cultivar cana de açúcar e a utilizar mão-de-obra escrava oriunda do continente africano. Em 1804 negros e mulatos haitianos travaram uma luta feroz contra os colonizadores franceses, que ficou conhecida como uma guerra de libertação nacional. Este movimento anti-racista e anti-colonial foi liderado pelo ex-escravo Toussaint L”Ouverture e, logo mais tarde, sob o comando de Jacques ...

Sobre a Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima

“Uma cultura é, para os membros da comunidade que a vivem, um âmbito de verdades evidentes que não requerem justificação e cujo fundamento não se vê nem se investiga, ao menos que, no devir dessa comunidade, surja um conflito cultural que leve a tal reflexão. Esta última é a nossa situação atual” (Humberto Maturana ) Situada no nordeste do estado de Roraima, a terra indígena Raposa Serra do Sol é uma das maiores terras indígenas do país, com cerca de 1,7 milhões de hectares e abriga atualmente cerca de 20 mil índios de cinco etnias diferentes, quais sejam: macuxi, uapixanas, ingaricós, taurepangues e patamonas. No ano de 2005 o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva homologou através do Decreto n°: 1775/96 a demarcação da terra indígena que em 1993 foi identificada pela FUNAI. Tal Decreto objetivou primordialmente a desocupação da terra pelos “não-índios”. Os principais sujeitos ocupantes destas terras indígenas foram os produtores de arroz. Estes na década de 70 havia...

Um caps lock no direito eletrônico e um F5 na globalização

"Queria querer gritar setecentas mil vezes Como são lindos, como são lindos os burgueses E os japoneses Mas tudo é muito mais..." Caetano Veloso O panorama histórico das sociedades locais, nacionais contemporâneas e da sociedade global em desenvolvimento está submerso em um cenário de incertezas. Estamos vivendo uma nova época, em que se despreendem novas guerras, novas revoluções burguesas e novas revoluções socialistas, de tal forma, que o globalismo/planetarismo vai deixando de ser o principal alvo culposo das desigualdades sociais e passa a ser também o principal alvo da integração regional e da fragmentação. "Estamos começando a ver o surgimento de uma multidão que não é definida por uma identidade isolada, mas que consegue descobrir a comunidade em sua multiplicidade" Michael Hardt e Antonio Negri em - Manifestantes querem globalização alternativa, Folha de São Paulo, 21 de julho de 2001 -. A globalização passa a causar literalmente uma bal...